Heróis desmatadores

03/05/2018

“Não entendo essa crítica ao desmatamento. O desmatamento é que permite aumentar a produção. Todo mundo desmatava, produzia e progredia. Agora estão criticando o desmatamento. Como vai progredir sem desmatar?” Não ouvi esse lamento de um ruralista manipulador. O lamento e pergunta veio de uma tia sexagenária que me visitava e viu pela televisão uma reportagem sobre desmatamento. Ela sabe que estudo o desmatamento na Amazônia e advogo que é preciso parar de desmatar. Minha tia, como o resto da minha família, é de origem rural, embora uma boa parte tenha migrado para cidades há várias décadas. Antes de dizer o que respondi a ela, um resumo da saga familiar.

Meus parentes cresceram produzindo cacau, fumo, farinha, gado, inhame e outros produtos no interior baiano. Entre as décadas de 1960-70 muitos deles migraram para São Paulo. Mas em 1968 (um mês depois que nasci na Bahia) meus pais, avós maternos e muitos tios resolveram buscar novas terras na Amazônia, seguindo a Belém-Brasília até a divisa do Pará com o Maranhão. Outros parentes seguiram depois pela Transamazônica.

O sonho era conseguir terras para pecuária. Para obter o título da terra, teriam que desmatar pelo menos 50% da área. Porém, pouco depois de se embrenhar na mata, meu pai teve malária. Enquanto se tratava na vila do Itinga no Maranhão, conseguiu um emprego que depois o levou a outro em Castanhal, no Pará, cerca de 400 km ao norte. Mesmo morando em Castanhal, meus pais continuaram tentando investir na pecuária do Maranhão. Enquanto crescia e estudava em Castanhal, visitava meus avós que continuaram no Maranhão.

Ao longo de 17 anos, vi como a paisagem mudou ao longo de 400 km entre Castanhal e o Itinga e nos 20 km entre o Itinga e a fazenda dos meus avós. No início, muito pequeno, eu viajava esse último trecho por uma trilha na floresta na garupa de muares. Os cantos de pássaros e cigarras me impressionavam. A penumbra da floresta e o vulto de animais que apareciam de repente evocavam mistério. À medida que crescia e voltava à fazenda nas férias, eu acompanhava meu avô na lida com o gado: prender os bezerros no curral no final da tarde, tirar lei das vacas na madrugada seguinte, curar feridas no umbigo ou chifre de um boi, buscar um novilho que ficou pra trás.

Houve algum progresso na região como minha tia esperaria. Mas, ao longo dos anos, não pude deixar de perceber os problemas da expansão dos pastos que ocuparam a maior parte das áreas no entorno das estradas: erosão e assoreamento de rios com suas margens desmatadas, enormes pastos com baixa produção e florestas degradadas por causa da extração de madeira e fogo. O fracasso econômico não era raro. Meu pai desistiu da fazenda alguns anos depois. Meu avô continuou até os pastos ficarem degradados, e sofreu com a perda de gado depois de alguns anos muitos secos (na época eu não sabia o que era o fenômeno El Niño que leva à redução de chuvas na Amazônia).

A degradação que que vi com os próprios olhos e depois como estudante e profissional de engenharia florestal ocorreu em vastas áreas da Amazônia e foi vista pelo mundo por meio dos olhos dos satélites. Cerca de 20% da floresta foi derrubado e uma área equivalente são florestas degradadas. Nos últimos trinta anos muitas mudanças levaram à contestação do desmatamento. Quem desmata não é mais visto como herói por um número significativo de pessoas.

Primeiro, por que boa parte do desmatamento recente é ilegal. Segundo, é desnecessário desmatar para produzir. Já existe uma enorme área desmatada onde seria possível aumentar a produção. Em 2014, segundo dados do governo brasileiro (Inpe e Embrapa), havia cerca de 10 milhões de hectares de pastos degradados na Amazônia (quase um quarto da área desmatada) e mais de 50 milhões de hectares no Brasil – isso equivale a quase o território de Minas Gerais ou o território da Espanha.

Terceiro, o desmatamento, seguido da queimada para limpar o solo, adoece e mata. A queima da vegetação é a principal fonte de poluição do país. Isso mesmo, queimar florestas no Brasil polui mais do que os automóveis e a indústria. Essa poluição afeta pessoas na região, no restante do país e no continente Sul Americano. Os poluentes seguem pela atmosfera e atingem grandes cidades como São Paulo. Reduzir o desmatamento salva vidas. Dados de 2001 a 2012 revelam que a queda do desmatamento reduziu cerca de 1.700 mortes prematuras por doenças respiratórias por ano. Além disso, a redução do desmatamento diminuiu o número de crianças que nasceram prematuramente e abaixo do peso em municípios da região.

Se o desmatamento é tão ruim, por que ainda não parou?

Desmatar ainda gera ganhos e é validado por crenças equivocadas como a da minha tia de que cortar árvores significa progresso. Por exemplo, mesmo sendo ilegal, grileiros de terras públicas desmatam para demonstrar que ocuparam a área e depois cobrar por seu aluguel ou venda. Outros se aproveitam da impunidade e desmatam ilegalmente para aumentar seus ganhos agropecuários. Há ainda fazendeiros que desmatam para aumentar a produção em novas áreas ou por não saberem ou por não terem dinheiro para investir no aumento de produção na área desmatada. Portanto, o desmatamento que gera efeitos negativos não acabará espontaneamente.

Para zerar o desmatamento será necessário punir quem desmata ilegalmente e apoiar quem precisa aprender a produzir mais nas terras já desmatadas. Essas mudanças serão mais fáceis quanto mais pessoas abandonarem a crença antiquada de que quem desmata é um herói gerador de progresso. Quem quer continuar a ganhar com o desmatamento, mesmo sabendo que é ilegal e prejudicial, tem tentado reforçar a narrativa do desmatador herói. Recentemente, fizeram isso com sucesso para ganhar legitimidade e fazer o Congresso aprovar leis que facilitaram mais ocupação de terras públicas e perdoaram parte do desmatamento ilegal.

Para contrapor essa narrativa, é preciso lembrar fatos. Zerar o desmatamento da Amazônia reduziria apenas 0,013% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil. Essa perda seria facilmente compensada aumentando a cada ano a produtividade da pecuária em cerca de 390 mil hectares– ou seja, em menos de 1% do pasto existente em 2016. A pressão que ajudou a reduzir cerca de 80% da taxa do desmatamento entre 2005 e 2012 estimulou fazendeiros e agricultores a usarem melhor as áreas já desmatadas. Isso demonstra que os agricultores que usam bem as terras já desmatadas podem fazer melhor pelo Brasil do que os desmatadores.

Editado por Gláucia Barreto


Memórias – A maratona para desvendar a exploração da madeira mais valiosa da Amazônia

16/01/2012

Quando publicamos uma pesquisa cientifica, apresentamos os métodos e os resultados. Porém, as estórias envolvidas na pesquisa podem ser também muito reveladoras. Abaixo, conto os ˜bastidores˜ da maratona para coletar dados sobre a exploração de mogno.

Em 1992, eu e Beto Veríssimo fomos para o sul do Pará com a missão de estudar os impactos ambientais e a economia de exploração de mogno, a madeira mais valiosa da Amazônia naquela época. Dominávamos bem a abordagem do estudo, pois já tínhamos feito trabalho similar em outras regiões do estado.

Para caracterizar a economia da exploração mapearíamos quantas empresas madeireiras operavam na região, o volume explorado e os gastos e receitas de uma amostra das empresas. Para tanto, teríamos que entrevistar os donos ou gerentes de várias empresas madeireiras e os capatazes das operações de exploração no campo.

Para avaliar o impacto ambiental teríamos de medir em algumas áreas indicadores como quantas árvores foram exploradas por hectare, a área aberta pela exploração (estradas, pátios de estocagem, clareiras abertas pela derrubada e arraste das árvores até os pátios de estocagem) e o número de árvores danificadas por todas estas operações. Entretanto, sabíamos que talvez tivéssemos que fazer alguma adaptação para a coleta dos impactos ecológicos. Em outras regiões que estudamos eram exploradas várias espécies, mas nesta região dominava a exploração apenas do mogno que tinha uma distribuição peculiar. Quantas áreas teríamos que medir para caracterizar bem os impactos? Teríamos de resolver isto no campo. Mas este não foi o principal desafio da coleta de dados.
A coleta de dados durou cerca de três meses e se revelou uma maratona combinada com saltos e desvios de obstáculos. Como em muitos casos de coleta de dados na Amazônia, experimentamos muitos momentos fora da zona de conforto.

Sabíamos que a região de estudo era marcada pela violência associada a disputas pelo controle de territórios para a exploração do mogno, de terras e de ouro. De fato, quando mencionava o que estávamos estudando ouvi vários casos de disputa o que tornava o clima de terror quase palpável.  Por isso, decidimos sermos econômicos quando explicávamos o que estávamos fazendo na região.

Como a exploração era muitas vezes associada à ilegalidade, era provável que muitos madeireiros negassem informações e o acesso as áreas de exploração. Por isso, fiquei bastante contente quando dois madeiros nos autorizaram a estudar suas áreas.

Partimos de Tucumã, a cidade que usamos como base inicial, para a primeira área. Parte da equipe foi em nosso carro (um Gol velho inapropriado para as estradas da região) e parte de carona em um dos caminhões da madeireira. Chegamos na área no fim do dia, depois de desatolar nosso carro algumas vezes. Como de costume, em áreas distantes da cidade dormimos no barraco no acampamento dos operários. Os barracos naquela época eram típicos, cobertos de lona plástica e sem paredes. Equipamentos e pessoas se misturavam. As pessoas dormiam em redes. A cozinha ficava separada.

Durante a madrugada, ouvi que outras pessoas chegaram ao barraco. Pela manhã, descobrimos que quem chegou foi o tio do madeireiro que nos autorizara a estudar a área. A área era um latifúndio dividido por vários membros da família, uma técnica comum de grilagem de terras. Ele chegara de Goiás, onde a família vivia. De cara, ele disse para sairmos da área. Embora sua indumentária incluísse um revolver bem visível na cintura, tentamos explicar que a pesquisa não era focada nele individualmente. A análise não revelaria a localização precisa da exploração e nem o nome da empresa. Para cada argumento, ele contra argumentava. Para mim, a negação definitiva foi: E se vocês estiverem procurando por ouro? Concluímos que não conseguiríamos convencê-lo e que seria perigoso ficar ali.

Reempacotamos a bagagem para seguir para a segunda área. Mas como parte da equipe chegou ali de carona no caminhão desta empresa, tive que voltar a cidade para pegar carona no caminhão de outro madeireiro.

A carona com o caminhoneiro para a próxima área foi mais assustadora do que despertar com o não de um madeireiro armado e desconfiado.

O transporte de toras da empresa era terceirizado para caminhoneiros que vinham de outras regiões do país para faturar alto na safra de mogno. Por isso, eles corriam feito loucos para maximizar o número de viagens. A parte final da viagem de cerca de 180 quilômetros foi durante a noite, em alta velocidade, por uma estrada muito estreita, tortuosa e empoeirada. Era um comboio de caminhões, mas eu não enxergava mais do que cinco metros a frente.  O motorista propositalmente acelerava para assustar a mim e ao jovem assistente que contratamos na cidade. Eu fingia que estava tudo bem para não estimular o motorista a correr ainda mais, mas achei que não chegaria vivo. Chegamos.

Passamos cerca de uma semana no acampamento cujas condições eram típicas. O sono era perturbado por caminhões que iam e vinham durante a noite inteira. A comida era bruta: muito sal e gordura. Saudade de frutas e verduras. Tomávamos vitamina C para prevenir doenças em tais condições.

Em geral, eu já estava acostumado ao acampamentos, que o Ministério do Trabalho classificaria de sub-humanos, mas nesta área havia um agravante. O igarapé intermitente que foi barrado para reservar a água, estava secando rapidamente no fim do verão. A lavagem de roupa engordurada, utensílios de cozinha e equipamentos da equipe de exploração formou uma camada de sujeira na superfície da água.  Depois de um dia de trabalho na floresta, este era a única alternativa para o banho. Antes de banhar, empurrava a camada de gordura para o lado e ia em frente. Pelo menos usávamos nossa água mineral para beber e escovar os dentes.

Quando os operários da exploração nos viam desarmados andando pela mata fazendo as medições, tentavam nos assustar dizendo que nós iriamos encabelar a merda da onça. Explico. As fezes da onça contém grande quantidade de pelos de suas presas. De fato, vimos fezes e pegadas de onças na área. Além disso, um dia um dos meus assistentes, que estava a cerca de 40 metros de mim, correu em minha direção gritando que tinha visto uma onça. Aguardamos, observamos e ela não apareceu. Continuamos o trabalho. Não sei se ele de fato viu a onça ou foi impressionado pelos estimulo dos operários e pelos sinais da presença delas na mata.

Um dia apareceu no acampamento o dono da área, ou seja o cara que ocupou o território e vendeu o direito de exploração para o madeireiro que nos autorizou a realizar o estudo. Semi-analfabeto, o dono desta área tinha ficado rico localizando as áreas com concentração de mogno e depois enviando equipes para encontrar e derrubar as árvores e depois abrir e sinalizar as trilhas para que o madeireiro retirasse as toras da floresta.  Literalmente, ele vendia o mapa do ouro verde para o madeireiro. De vez em quando, ele ia na área supervisionar as operações.

Ele era um sujeito misterioso e com fama de mal. Imagine o que ele tinha que fazer para controlar estes territórios ricos em mogno? Na região, dizia-se que os donos das áreas eliminavam os inimigos.

Durante esta visita, peguei carona em sua caminhonete para voltar de um trecho da mata até o barraco. Queria saber como ele trabalhava, como encontrava o mogno. Ele contou, mas foi econômico. De avião, eles identificavam as concentrações de mogno pelo brilho das suas folhas nas partes mais baixas do terreno. Armado de espingarda, se animou ao contar estórias de como matou onças.

Naquela época, sem GPS não sabíamos exatamente a localização desta área no mapa da região. Depois, descobrimos que a exploração era dentro de uma área indígena. Não conseguimos saber se os índios autorizaram ou não esta exploração.

Ficamos sabendo que a equipe da empresa terminaria a extração antes de concluirmos a coleta de dados. Por isso, Beto foi à cidade contratar um veículo com motorista para continuarmos o trabalho depois que os operários da empresa partissem. Poucos dias depois que Beto chegou com o caminhoneiro, ele começou a passar mal. Aceleramos o passo para concluir os levantamentos.  O motorista contratado ficou muito mal. Jurandir, o nosso assistente, mesmo sem muita prática, teve que dirigir o caminhão de volta. Em Tucumã, descobrimos que o motorista estava com malária. Sabia que a doença é penosa, pois cresci vendo casos na família. Fizemos exames também, mas estávamos sãos.  Alívio.

Outro madeireiro autorizou o estudo na segunda área que ficava em São Felix do Xingu.
Fomos a beira do rio Xingu aguardar a balsa que nos levaria até próximo da área. Porém, a balsa chegou carregada de equipamentos e de operários que abandonaram a área. Segundo eles, os índios que teriam autorizado a exploração invadiram a área demandando um pagamento maior pela madeira.  Teríamos que achar outra área.

Ainda em São Félix, nos informaram de um extrator local, mas ele nos evitava. Depois de várias tentativas conseguimos a autorização. Finalmente, cruzamos o belíssimo rio Xingu.

O acampamento desta segunda área era ainda mais precário. Havia uma pessoa doente que ficava o tempo todo em uma rede. Desconfiamos que fosse malária e decidimos ficar em outro local. Uma família de colonos aceitou que armássemos nossas redes na casa de farinha deles (um pequeno barraco sem paredes com a máquina para ralar a mandioca e o forno para assar a farinha). Pouco dias depois de começarmos o trabalho nesta área, parou na estrada em frente ao nosso barraco uma camionete que transportava um defunto para a cidade. Teria morrido de uma doença repentina e desconhecida. Mais um incentivo para concluirmos rapidamente a coleta de dados nesta área.

A terceira área de estudo, próxima a Redenção, foi relativamente fácil. Ficamos hospedados no rancho da fazenda que ainda tinha uma rara reserva de mogno nesta região.

Depois de três meses, cumprimos a missão de coletar os dados sobre a exploração e o processamento do mogno nas serrarias. Quando voltei a Belém, minha namorada na época (atual esposa) achou que voltei com cheiro de selvagem e bem mais magro.

Para finalizar o trabalho ainda foi necessário um novo levantamento a ocupação em torno das estradas abertas pelos madeireiros. Nosso levantamento inicial mostrou eu os madeireiros abriram cerca de 3.000 km de estradas no sul do Pará e que parte destas estradas estavam sendo ocupadas por colonos e grileiros. Nosso colega Ricardo Tarifa voltou a região para  fazer este levantamento.

Publicamos o estudo em inglês em uma das revistas mais conceituadas do setor, a Forest Ecology and Management. Depois, publicamos em português em uma publicação do Imazon. Até dezembro de 2011, o estudo em inglês foi altamente citado (201 vezes) em outras publicações cientificas.

Mais importante ainda, o estudo inspirou novos estudos sobre a ecologia do mogno e iniciativas não governamentais e governamentais para controlar a exploração do mogno.

Seguem abaixo os links para as versões em inglês e português:

Extraction of a high-value natural resource in Amazonia: the case of mahogany

Inglês: http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/037811279403432V#AFF2

Português: http://www.imazon.org.br/publicacoes/livros/a-expansao-madeireira-na-amazonia-impactos-e/at_download/file